Filosofia do banheiro de uma escola pública

Rafael Tavares Dias
5 min readOct 18, 2021

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Em 2018, quando o texto foi escrito, eu era um estudante estagiário. Hoje, 2021, sou professor titular de Filosofia e História de categoria O.

A Escola Estadual Prof. Baltazar de Godoy Moreira , situada na R. Vinte e Quatro de Dezembro, 2687 , Zona Norte da cidade de Marília, interior de São Paulo, é frequentada principalmente por estudantes e família do bairro e bairros adjacentes (atualmente, devido a implementação do Projeto Escola integral, essa realidade mudou, frequentando a escola uma grande proporção de estudantes que moram bem longe), na maioria negros e pardos e pobres. Ainda que a estrutura da Escola seja razoável e atenda as necessidades básicas da escola, com exceção de acessibilidade para estudantes, professores e funcionários com limitações de mobilidade, visto que não há rampas de acesso e o acesso as salas de aula ocorre a partir de dois lances de escadas.

Nesta análise que tem o desafio de ser tanto de cunho social quanto filosófico, optou-se para trabalhar um detalhe e suas implicações, uma vez que já existem páginas e mais páginas escritas a cerca da realidade social dos estudantes e o quanto isso é fundamental e prioritário na caracterização de qualquer escola.

Então, sem descartar esse cenário é anterior a qualquer análise, sugiro olhar um dos espaços mais visitados pelos estudantes durante as aulas: os banheiros. Como podem ser tão interessantes aos estudantes ir ao banheiro em todas as aulas, as vezes até duas vezes por aula? Essa questão me fez investigar o que seria aquele local para os estudantes e buscar nele o que poderia de haver de tão interessante. Mas, na realidade, não me deparei com nada, apenas com uma estrutura precária, um cenário altamente desenteressante, quieto, apertado, deparedes e piso branco, privadas sem acento e desconfortáveis, situação que me fez perceber que nem no banheiro e nem no resto da escola há espelhos (ou conforto e interesse).

Com exceção de um espelho bem pequeno na sala dos professores que fica atrás da porta, a escola como um todo não possui mais nenhum espelho de fácil acesso. Nem nos banheiros, nem na biblioteca, no refeitório, nem nas salas ou corredores. Essa disposição é curiosamente semelhante a prisões, asilos e manicômios. Esses três últimos lugares, em geral, também não possuem espelhos, porém possuem um motivo mais ou menos explícito que justifique a ausência de espelhos. Não cabe neste trabalho julgar se os motivos levantados para defender a inexistência de espelhos nestes locais são justas ou não, mas cabe pensar a realidade da escola.

O espelho pode se tornar um objeto cortante e, por esse motivo, fica fácil entender o porque de se evitar em lugar como prisões. Porém, tanto em manicômios quanto em asilos o motivo é outro. Dificultar o autocuidado e a percepção do tempo. Em um asilo espera-se que a pessoa idosa não fique melancólica com sua condição e, para isso, evita-se que ela veja seu próprio rosto ao longo do tempo. Isso também implica que ela precisa de ajuda para tarefas simples como cuidar de seu rosto, seja limpando, seja com outra atividade cosmética. Ela se torna dependente de outros para que digam como ela está, para que digam como ela é.

Na escola, a situação é análoga. A escola espera que estudantes, aqueles corpos jovens dos quais muitas realidades diversas são possíveis e poucas delas são controláveis, possam ser violentos ou vândalos, quebrando os espelho e, talvez, causando ferimentos. Mas o que resulta deste cuidado e ausência do espelho pressupondo um comportamento violento é justamente uma violência da escola e uma reação comportamental igualmente violenta dos estudantes.

A partir de uma leitura da Fenomenologia do Espirito, de Hegel, em específico o capítulo em que é descrito a relação dialética do Senhor e do Escravo, podemos tomar que uma ação de um grupo é, antes, uma reação a um Outro grupo. Este Outro grupo, por sua vez, também não realiza uma ação, mas uma reação. Trata-se, portanto, de reações mútuas que exigem da outra justamente o que foi exigida delas. Em outra palavras, na realidade escolar e no caso dos espelhos, a expectativa de que os estudantes sejam violentos gera uma série de medidas da parte da burocracia escolar que exige dos estudantes que eles sejam justamente violentos. Estes quanto são [violentos] por conta de um ambiente hostil ao seu ser, atualizam a expectativa da escola e confirma justamente aquela violência inicial. Não é o clichê de que violência geral violência, mas uma sugestão de análise filosófica e geral de uma situação concreta: a violência é uma linguagem pela qual a comunidade escolar, estudantes e burocracia escolar, se comunicam e se relacionam. Uma linguagem mais efetiva, do ponto de vista da comunicação, que qual quer outra, uma vez que a dor, a disciplina, o domínio a coisificação não geram dúvidas de ação e de comportamento, pois também não geram capacidade de reflexão e questionamentos, uma vez que inibem justamente a autonomia, a individualidade, a coletividade consciente e a possibilidade de manifestação racional dos estudantes. Resta, portanto, apenas um único meio de “dialogo”, aquele que controla o corpo e limita a ação, limitando o uso do espaço, a ocupação do espaço escolar e a usufruição da adolescência.

Além disso, simbolicamente, temos uma escola sem reflexão, sem auto conhecimento e sem reconhecimento. A escola que deve ser o espaço que estimule esse tipo de prática, na verdade é aquele que poda os sujeitos em modelos de “cidadãos” acríticos e sem consciência de sua história. É como se a escola não permitisse que os estudantes se enxergassem, como se ela não permitisse perceber no dia a dia a aparência que nessa época se transforma todos os dias. Na juventude, época de transformação biológica dos humanos, seu corpo é modificado a cada semana, porém esse auto olhar na escola não tem o mínimo espaço. Esse descobrimento deve ser feito na própria casa, no espaço familiar, no âmbito privado, no âmbito da tradição familiar, muitas vezes com forte influencia religiosa, que determina o significado da transformação biológica dos humanos, em geral, como algo vil.

Se não há reflexão na escola, é claro que não é pela falta de espelhos. Mas a falta de espelhos é sim causada pela falta de reflexão. A partir daí, em nível simbólico podemos verificar a conduta da administração escolar de controlar o comportamento estudantil a cada passo, com o professor na sala de aula, com as câmeras e inspetores nos corredores e com uma estrutura hostil nos banheiros: baias masculinas sem portas, provavelmente para evitar qualquer tentativa se esconder ou de privacidade. A ausência de espelhos já comentada. O papel higiênico trancado em apenas uma baia, para evitar o uso em outras privadas e facilitar a limpeza. A ausência de chuveiros ou vestiários, já que não é estimulado o esporte e nem a permanência na escola fora do horário de aula (e fora da sala de aula)

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