Teoria e Poder: uma visão anarquista do conceito de teoria em bell hooks

Rafael Tavares Dias
14 min readJan 10, 2022

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Resumo: Reflexões acerca do conceito de teoria e de política. Ao contrário do que comumente é dito, aqui será defendido que conhecimento não é poder, ou ainda, que teoria não é poder. Neste artigo/relato é feito a discriminação entre teoria e poder, discorrendo sobre este a partir das reflexões de Fábio López Lopés em “Poder e Domínio” e sobre aquele a partir do exposto por bell hooks em “Ensinando a Transgredir”. Depois de diferenciar ambos conceitos, apresentamos as características gerais e germinais de uma possível teoria anarquista, bem como os principais traços da noção de teoria segundo a classe dominante no capitalismo. Em seguida, apresentamos situações concretas, a partir de relatos e outros materiais audiovisuais, que retratam o modelo de teoria exposto pela bell hooks em prática, tanto em comunidades de povos originários e ribeirinhos no Estado do PA, quanto no episódio das ocupações das escolas secundaristas pelo movimento estudantil em 2016 no Estado de SP.

Ingressei recentemente no Grupo Autônomo de Introdução ao Anarquismo que realiza encontros mensalmente aos sábados. No dia 08 de janeiro, participei da primeira reunião do grupo que propunha um diálogo entre bell hooks e as experiências de ocupação das escolas de SP pelos estudantes secundaristas em 2016. Aqui vou expor algumas reflexões que vieram deste encontro.

Tive a oportunidade de ser confrontado com uma pergunta que me toca profundamente: teoria é poder? Pessoalmente, enquanto professor, militante e filósofo — de baixa cilindrada rs. — pensar sobre teoria abarca todas as esférias da minha pessoa. Além disso, enquanto pergunta objetiva, principalmente para anarquistas, trata-se de uma provocação que alcança as dimensões política e estratégica. Podemos analisar a pergunta em dois componentes: teoria e poder. Quais são as características de uma teoria? No mesmo sentido, o que é poder? Ainda, mais uma pergunta — muito presente nos debates anarquistas, diga-se de passagem — para um ponto de partida: seria a anarquia a abolição do poder?

Vamos começar respondendo de trás pra frente. De maneira taxativa, o Anarquismo não precisa (e nem deveria) abolir o poder. O poder é um componente da política, está por sua vez é uma produto humano caracterizado por ser uma forma de resolução de conflitos.

Humanos são seres que possuem desejos, vontades e interesses e, vivendo em comunidade — e não poderia ser diferente –, é natural que surjam conflitos entre nós. A política visa resolver conflitos, pois ela é a correlação de forças entre os grupos que estão envolvidos em um jogo de interesses. A resolução do problema é literalmente um resultado prático daquela correlação de forças, ou seja, é a efetivação parcial ou integral de um ou de alguns dos interesses conflitantes. A correlação de forças é uma disputa entre a capacidade de realizar uma ação que todo indivíduo e grupo possuem, portanto, é chamada de força social. Quanto maior a força social, maior a capacidade de realizar uma determinada ação. Por vezes, ainda que toda ação exija uma certa força social, nem toda ação gera conflito de interesse entre diferente grupos, logo, nem toda força social está em disputa com outra, não gerando a ocorrência da política.

A efetivação de uma vontade indica que um grupo detém poder. Sendo uma efetivação parcial da vontade, entende-se que um grupo não possui poder absoluto, pois tinha apenas uma força social suficientemente maior que seus concorrentes para garantir a vitória na política. Disso extraímos alguns axiomas: 1) poder é efetivação da vontade; 2) política é correlação de força social; 3) força social é a capacidade de realização de alguma ação.

Estas ideias acima estão muito melhormente elaboradas no livro “Poder e domínio” de Fábio López Lopéz. Me servirei dessa obra mais um pouco para discorrer sobre o Poder. O autor escreve que “o poder é global” (p.52). Ele quer dizer que o poder aglutina indivíduos e comunidades entorno de um conjunto de regras e princípios capazes de realizar um ou alguns objetivos. Como veremos mais a frente, com essa caracterização de poder, quero indicar que uma teoria não é necessariamente poder, mas somente um recurso que potencializa a ação, ou seja, é adição de força social (que é a condição para algo ser feito).

Exemplo prático: no encontro do grupo de estudos anarquistas, possuímos algumas regras que visam socializar o poder, são elas, a garantia de espaço para que todes falem, de espaço para que todes leiam, de compartilhamento entre todes dos materiais de pesquisa e por aí vai… Contudo, essas regras não muda que, entre nós, alguns saibam mais de bell hooks, ou mais de filosofia, ou mais de pedagogia, ou mais sobre as ocupações ou mais sobre outras coisas que ainda não foram tema. Esse conhecimento de cada pode ser maior ou menor comparativamente, mas o fato é o que produzimos ou possuímos teorias diferentes umas das outras. Inclusive, algumas delas podem ser mais convincentes que outras. Mas na prática, as teorias diferentes que são expostas no grupo não estão exercendo uma relação de poder — e muito menos de dominação — entre quem está participando. Digo isso por dois motivos, ambos imediatos: primeiro que as regras do grupo (as vezes não ditas) não estabelecem relações hierárquicas entre nós, ainda que uma possa ser mais iniciado em um determinado assunto. Segundo que as teorias nem sempre estão em disputa, diferentemente do poder que pressupõe a correlação de força social e denota a efetivação de uma vontade.

Por tanto, teoria potencializa a ação ampliando a força social, que por sua vez, em um contexto de correlação, torna-se poder quando efetiva-se em um objetivo (de uma vontade). Se não efetivou-se concretamente, então na correlação de forças não ocorreu “vitória” e a força social não foi suficiente, portanto não houve poder. Logo, derivamos uma outra característica do poder: ele é meio, ele é método. O poder ocorre quando efetiva-se um objetivo. Tendo em vista que pessoas possuem interesses, elas passam a buscar poder para realizar um objetivo. O poder é o instrumento com o qual efetivamos a vontade.

Tendo em mente estas características do poder, vamos a primeira pergunta, aquela a cerca do conceito de teoria. López López dedicou algumas páginas da sua obra para discorrer sobre o “teorizar”, mas trazer aquelas ideias para cá seriam menos desafiadoras, visto que já estão muito bem explicitadas lá mesmo. Neste texto trabalharemos com a noção de teoria que bell hooks apresenta da obra “Ensinando a transgredir”, pois fui instigado pela autora a pensar um modelo de teoria pouco ou quase nada tradicional, também fui nutrido pelo debate ocorrido no encontro do G.A.I.A e, por último, representa uma síntese de reflexões discutidas com uma companheira de luta do PSOL, a Tali, que foi quem me apresentou ineditamente este livro e com quem pude debater alguns capítulos durante algumas semanas.

A bell hooks traz pra gente que teoria é cura. No quinto capítulo de sua obra, ela expõe que sua jornada pessoal levou-a ao exercício teórico porque nele encontrava uma cura para suas dores, uma cura no sentido de estar bem ao passo que livrava-se do pensamento colonizado. A visão de bell hooks sobre teoria é da unidade da ação e do pensamento, é sobre um pensar e agir libertário (ou decolonial) que não objetiva algo diferente do que ser livre mesmo. Contraponho poder e teoria: poder é meio, enquanto que a teoria é fim, indissociável da prática.

Uma práxis libertadora está imbuída de uma teoria libertadora que, enquanto tal, precisa ser uma teoria que entende-se (reconhece a si mesma como) vinculada com a prática. No capitalismo, a teoria produzida repele a prática e não aceita reconhecer que existe “dentro” dela uma prática — da inação, eu diria. Mas falaremos sobre o conceito de teoria no capitalismo adiante.

Agora, cabe perguntar: que prática libertadora é essa se não a ação ética? Se não aquela conduta que valoriza a vida como um sujeito no mundo? A teoria libertadora deve apontar para todo ser vivo como um agente liberto, nunca como um objeto passivo de escravidão ou mercadorização. Trata-se da vontade de viver neste planeta segundo a liberdade, igualdade e solidariedade, estabelecendo relações humanas entre humanos e não relações mercadológicas, objetificadoras e burocráticas.

Não seriam essas as características gerais de toda anarquia? É o engendramento de táticas e estratégias coerentes entre si, cuja finalidade é realizar universalmente — de maneira que a história hegemônica da Europa não conseguiu — os princípios iluministas. Para realizar esta finalidade, não cabe instituir as teorias anarquistas enquanto ciência, mas sim como princípios críticos de conduta, ou em outras palavras, segundo nosso entendimento, mas sim como uma ética. A anarquia é uma ética.

Escrevendo daqui, de uma América Latina colonizada, explorada e oprimida, parece difícil afirmar-me como anarquista visto que sou cooptado pela burocracia enraizada no cotidiano, impelindo-me a estabelecer relações mercadológicas com pares da minha comunidade, com a natureza, com minha cidade e até com meus próprios desejos e afetos. Mas, se digo que sou anarquista, é porque acredito que um outro mundo é possível. Mais que isso, é porque desejo construí um novo mundo no agora, no imediato das minhas ações, nas minhas relações pessoais e afetivas, no meu local de trabalho, de moradia e de estudo, e concluo que só posso ser anarquista porque atuo no cotidiano como um, porque pratico uma anarquia, porque busco agir segundo uma ética. A ética anarquista cotidiana. Essas ações são como centelhas do Anarquismo, são relâmpagos clareando e cortando o céu durante uma tempestade tropical. A história está recheada de exemplos em que estes clarões ocorreram e inflamaram corações e mentes a construir anarquias: Comuna de Paris, Kronstad, revolução espanhola, Rojava, maio de 68, EZLN, a revolta dos pinguins, São Paulo em 1917, Brasil 2013, Secundaristas de 2016, Chile 2019, Minneapolis 2020, peco por não ter memória para todas.

A teoria e seu poder de cura que bell hooks apresenta para nós é o esforço de criar formas de agir no mundo que possam superar a dor da opressão e da exploração dos povos. Logo, o ponto de partida da teoria — e das anarquias — é precisamente a dor do cotidiano, a dor de sermos quem somos, no caso, pessoas latinas, majoritariamente não brancas que vivem em um Estado de Exceção — que na verdade é a regra a mais de 500 anos. Criar uma teoria de cura é libertador na medida em que nossas doenças são estruturas de dominação (masculina, branca, cis, burguesa e burocrática). A ética anarquista é uma alternativa de cura na medida em que ela exige a coerência entre tática e estratégia. Ela não posterga viver de forma libertadora, ao contrário, no contexto dos desafios da vida cotidiana e na contradição de viver a liberdade — justamente por estarmos presos –, possui um caráter de urgência, um caráter de imanência, um caráter de resolução dos problemas do agora, contudo, sem perder a imagem mais ou menos esfumaçada de outro mundo futuro.

Mas este texto precisa admitir que não é tão simples fazer afirmações comparando nossas ações cotidianas a relâmpagos que cortam o céu. Além do mais, até então existe margem para inferir que a) se teoria não é poder e b) anarquia é uma teoria baseada na ética (uma prática libertadora imbuída de teoria), então c) anarquia não é poder. Eu estaria em contradição. Outras consequências seriam que se anarquia não é poder, então ela d) não será um conjunto de regras aglutinadoras com um objetivo (a liberdade).

Quanto a isso, ainda que para uma ação ser efetiva basta força social e não necessariamente política, este nunca será o caso das lutas anarquistas, pois os interesses da classe trabalhadora e dos povos em viver segundo uma ética humanista serão sempre contrários aos interesses dos senhores (burguesia) de viver escravizando.

Para deixar isso mais evidente, chegou a hora de denunciar alguns traços da teoria hegemônica no Capitalismo. É preciso pontuar que, em toda a história da luta de classes, o poder hegemônico sempre foi das sucessivas classes dominantes em seus respectivos períodos, e que, enquanto tais, se preocupavam em manter e expandir seu poder. Por conta desta dinâmica cíclica de usar o poder para gerar mais poder, aquilo que era meio para realização de objetivo, tornou-se um fim. Consequentemente, as teorias construídas pelas classes detentoras do poder hegemônico ao longo da história foram instrumentalizadas e atribuíram-lhes a finalidade de angariar mais poder, visto que é este elemento que define a manutenção da dominação de uma classe. Ou seja, o poder que procura mais de si mesmo instrumentaliza a teoria a fim de potencializar a reprodução de poder.

No capitalismo, o que é concreto nas relações de trabalho (e, consequentemente, nas outras relações humanas) é a cisão entre trabalho manual e trabalho intelectual. Em nossa sociedade, são uns poucos que tem poder discricionário e são uns muitos que executam as decisões, estes últimos que executam nunca decidem nada sobre.

É comum pensar que a classe trabalhadora hoje não tem acesso à teoria. No entanto, parece mais certeiro dizer que nós não temos acesso à história da teoria, pois independente deste acesso, já estamos imbuídos da teoria dominante e instrumentalizada, que não reconhece a si mesma como uma prática (da inação), pois quer ser puramente abstrata, não quer servir a vida, mas somente ao capital (recurso para o poder). A história da teoria, por sua vez, é o acervo cultural produzido e reproduzido nas universidades e outros diversos espaços, que cristalizam a forma de pensar (e de agir), mas também guardam referências do pensamento de quase todas as áreas do pensamento e de muitos períodos históricos.

A teoria que nega ser prática, a dominante, se refugia na contemplação. Nós da classe trabalhadora, que somos cotidianamente confrontados com a divisão do trabalho manual e do trabalho intelectual, internalizamos que a prática contemplativa não nos cabe. É como se internalizássemos que não temos direito de refletir, que devemos apenas acatar decisões sempre vindas de cima. Este processo perscruta nosso psicológico também, bell hooks denuncia como que a posição subalterna da qual nós, povos negros, resistimos na América configura nossos afetos, provocando alguns sintomas como a baixa autoestima, uma revolta acumulada, a solidão e outros.

Essa internalização ocorre através da materialidade que nos impõe a servidão cotidiana, também temos nossa capacidade de teorizar sequestrada pelos recursos da mídia burguesa, pela democracia representativa e pelos esforços empreendidos pelas Corporações e pelos Estados em precarizar nossa vida.

Em outras palavras, toda prática possui uma teoria — mesmo que esta não se reconheça nas suas práticas — e a conduta passiva do servo em relação ao senhor é subsidiada pela teoria do próprio senhor, da classe dominante.

Para fazer um contraponto à teoria do “quem faz não pensa, quem pensa não faz”, quero trabalhar em cima de um relato que me chegou naquele encontro do grupo. Um companheiro, o Hugo, viajou por dias para duas comunidades, uma fica na floresta Tapajós e outra no rio Arapiuns (a 5 horas de barco da cidade mais próxima!), a primeira é aldeia indígena, chamada Maguari, e a segunda é comunidade ribeirinha, chamada Coróca, ambas no Estado do Pará. Hugo descreveu o dia a dia dessas aldeias e salientou que havia uma divisão e rotação do trabalho, que as pessoas tinham uma grande noção do que ocorria em suas aldeias, visto que circulavam em todas as tarefas delas. Também comenta que não havia rivalidade entre as famílias que viviam nas aldeias, que existia uma compreensão de que o desenvolvimento da comunidade seria coletivo ou não seria, isso era expressivo na frequência de assembleias que eram realizadas entre as famílias, uma média de vinte famílias em cada comunidade.

Diante deste relato, vejo que um contraponto ao modelo de teoria dominante (capitalista) seriam os povos que vivem de maneira autônoma — obviamente não me refiro ao isolamento geográfico, não se trata disso. Esses povos também não possuem acesso à história da teoria, visto que comumente isto é restrito aos grupos dominantes que possuem a propriedade privada dos recursos materiais. Mas ainda sim, estes povos são capazes de produzir teoria genuína porque são autônomos e são autônomos porque produzem teoria genuína. Essa teoria compreende a união entre o agir e o pensar, é uma teoria que se reconhece enquanto elemento presente no cotidiano prático do seu povo. É uma teoria libertária porque une o poder discricionário junto do poder de realizar um objetivo. Nestes casos, os objetivos não são a expansão de poder, mas somente o bem viver. O que é o bem viver se não a massificação de uma ética libertária? O poder é meio para realização da teoria (ou da práxis).

Trago outro contraponto, também estimulado pelos debates do G.A.I.A., as ocupações de escolas secundaristas em São Paulo em 2016. Este caso é comumente visto como uma ação espontaneísta daquelus jovens, mas julgo ser uma visão equivocada. Devemos lembrar das influências de movimentos organizados que, por meio de atividades e distribuição de materiais, como o “Manual de como ocupar sua escola”, ou o “Manual do mal educado”, uma parcela do corpo estudantil teve o estímulo a questionar sua realidade, a burocracia escolar e as dores que aquele modelo de escola lhes causavam. É muito ruim dizer que o movimento estudantil não sabia o que estava fazendo, isso não é verdade, mas também é falso dizer que sabiam completamente o que estavam fazendo. O ponto de Arquimedes neste episódio é entender que no processo ativo da ocupação estava sendo forjado uma teoria, ao mesmo tempo.

Hoje, relatos de quem ocupou, documentários e artigos apontam para o processo de ressignificação que as escolas passaram enquanto estiveram nas mãos estudantis. Estudantes perguntavam aos quatro ventos: o que é uma escola? O que é um espaço público? O que é ocupar um lugar? Qual é o lugar das meninas e dos meninos? O senso comum oferece respostas para todas essas perguntas, mas não lhe serviam porque lhes causavam dor. As primeiras ocupações surgiram de supetão, como relâmpagos cortando o céu, e instigaram que outras escolas ocupassem em seguida, respondiam na prática e de maneira autônoma todas aquelas perguntas. Foram críticos ao senso comum e a teoria dominante da inação. Segundo o Movimento Estudantil secundarista que ocupou, quem decide sobre a escola é quem nela vive.

Os estudantes garantiram determinada força social capaz de fazer política e ter vitória contra a reorganização, além de outros saldos sociais. Essa força social foi amplificada pela teoria que desenvolveram enquanto viviam a ocupação, uma teoria antiburocrática, baseada na associação mútua da comunidade e da escola, na liberdade de pensamento e na autogestão ( do local de estudo). A prática de uma ocupação dessas é imediatamente contrária à conduta capitalista, assim como a teoria produzida também é anti-capitalista.

O relato de Hugo e os episódios das ocupações apontam para a existência de uma sabedoria popular autônoma produzida através do fazer autônomo. Isso significa que o campo teórico deve ser um solo fértil em que o cultivo seja o fator principal, muito mais do que uma galeria de obras de arte em que o gosto advém da contemplação e faixas de “não ultrapasse”. O campo teórico é um espaço privilegiado para que os povos desenvolvam suas formas de viver diferente, mas serão formas diferentes na medida em que não estabelecerem relações utilitaristas entre humanos e nem cisões intransponíveis na realidade, como o trabalho manual e o intelectual, ou entre as raças, ou entre os gêneros, ou entre a cultura e a natureza. Esse campo de cultivo fértil é acessível, principalmente, através da intuição da dor, do sofrimento e do medo, pois participam de um espectro de afetos constantemente incitados em nós, os de baixo.

Na noção de teoria que bell hooks apresenta, além do apelo à práxis, também existe um vínculo necessário entre mudança social e afeto. O primeiro parece estar em uma dimensão coletiva, o segundo em uma dimensão individual, mas a percepção do próprio medo e sofrimento enquanto algo situacional — algo como não-natural — É causa e efeito da esperança de que as coisas não precisem ser assim. Daí inicia-se um efeito dominó que, através da relação teoria e prática que se retroalimentam, atinge mediações mais convincentes de que aquele medo é radicado neste modelo de relação social no qual vivemos, logo, tampouco é possível uma libertação individual daquele medo.

Pelo que já foi exposto, acredito que as estratégias anarquistas precisam operar com teorias que tenham como finalidade última a vida plena, mas que, a um tempo, acumulem força social capaz de fazer política — em outras palavras, estar na correlação de forças sociais — e desenvolver, na vitória, o poder popular, um instrumento para a realização da vida plena e nunca pela manutenção de uma classe social dominante.

Esse desafio de conciliar características imediatamente diferentes foi razoavelmente superado pelas experiências relatadas por Hugo e pelos episódios das ocupações. São exemplos em que os povos se fortalecem na medida em que vivem, nem tanto para terem mais força social, mas simplesmente para viver de maneira autônoma. Porém, sem dúvida, tão logo cultivam um modelo de vida anticapitalista, já são tragados pela correlação de forças. Mas, se é mantido a preocupação em cultivar um modo de vida autônomo e mais pleno, então conseguem atribuir significado ao seu próprio cotidiano, potencializando o próprio modo de vida, que em última análise, resiste naquela correlação de forças.

Como raios que cortam o céu e tocam a terra — ou o contrário, porque são muito rápidos — a teoria mexe com planos aparentemente distintos: conecta cima e baixo, que tinham sido divididos pela linha do horizonte e divide, esquerda e direita, que tinham sido unidos pela homogeneidade da visão distanciada. Agora sem metáforas, bell hooks fala de uma noção de teoria com muita conformidade as necessidades dos anarquismos. Entender a teoria como prática, as anarquias como éticas e o poder como uma possibilidade do poder popular é estratégico para desenvolver anarquismos cultivados socialmente e potencializados pelos afetos individuais.

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